Vida no deserto: a guerra de Israel contra a falta d’água

Como Israel se transformou numa potência agrícola, apesar do território reduzido, dos recursos hídricos limitados e da aparente infertilidade do solo.

Israel coleciona guerras desde que veio ao mundo, no final da década de 1950. Conflitos armados contra egípcios, sírios, libaneses, palestinos… Mas há outra guerra travada por Israel desde sempre, que não acontece em campos de batalha como estamos acostumados a imaginar.

Trata-se de uma luta contra a hostilidade do meio ambiente. Sim, porque o país carece de recursos hídricos e tem mais da metade do seu território coberta por desertos. Mesmo assim, a pequena nação do Oriente Médio hoje exporta frutas. Faz nascer flores onde antes só existia areia. E ensina outros países a lidar com a seca. De quebra, ainda fornece água para a Jordânia e a Autoridade Palestina, como parte dos acordos de paz.

É claro que ninguém vence uma guerra desse tipo com táticas improvisadas. “Superamos a escassez de água porque percebemos, muito cedo, que esse insumo é a chave para o desenvolvimento sustentável que almejamos”, diz Alex Furman, professor de hidrologia do Instituto Technion, em Haifa. “O investimento no setor de água nunca foi só uma questão política para Israel, mas uma decisão estratégica.”

Nos anos 1930, quando a Palestina estava sob o Mandato Britânico, os ingleses criaram os chamados Livros Brancos, que limitaram a imigração judaica. Um dos motivos da restrição era justamente a falta de água.

As autoridades coloniais britânicas haviam feito um estudo e concluíram que, entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, nunca poderiam viver mais do que 2 milhões de pessoas. Do contrário, a população morreria de sede. Os líderes judeus, então, iniciaram uma corrida contra o tempo para mostrar que esse cálculo estava errado. Em 1937 (ou seja, 11 anos antes da criação do Estado de Israel), fundaram uma companhia de água, a Mekorot, para centralizar sua distribuição.

Colheita de uvas no deserto de Neguev, sul de Israel: apesar dos recursos hídricos limitados, o país é hoje exportador de frutas. (David Silverman/Getty Images)

Era o primeiro passo de uma verdadeira revolução. Nove anos mais tarde, em uma única noite de 1946, eles inauguraram nada menos do que 11 kibutzim (fazendas) no Deserto do Neguev, abastecidos por um aqueduto projetado pelo engenheiro Simcha Blass. Deu certo: as fazendas acabaram influenciando a decisão da ONU de incluir a maior parte do Neguev dentro do Estado judeu previsto na partilha da Palestina de 1947.

Atualmente, mais de 13 milhões de pessoas vivem entre o Mediterrâneo e o Jordão (incluindo Israel, Gaza e Cisjordânia). A água disponível, apesar de escassa, satisfaz às necessidades de todos. Um “milagre” que só foi possível graças a inovações tecnológicas.

Irrigação
Após a independência de Israel, em 1948, as autoridades decidiram que a gestão da água seria feita em âmbito nacional, não local. E criaram um sistema de distribuição que incluía dois setores principais: do centro ao sul, construído em 1955; e do norte ao centro, feito em 1964. A água vinha do Lago Kineret (ou Mar da Galileia) e de aquíferos da costa e das montanhas. “Era um dos maiores sistemas do mundo na época, com tubulações de 108 polegadas [2,7 metros] de diâmetro, uma façanha para um país que, àquela altura, tinha apenas 15 anos de existência”, conta Furman.

*Água salobra ou de pior qualidade, usada em cultivos ou criação de peixe, entre outras atividades. Fonte: The Knesset Research and Information Center: Israeli Water Sector – Key Issues, 2018. (Andy Faria/Superinteressante)

Mas a maior inovação ainda estava por vir. Lembra do engenheiro Blass? Então: em 1936, ele havia visitado um cultivo de frutos cítricos irrigado por inundação – a mesma técnica usada até hoje em várzeas de arroz no Brasil. Durante a visita, notou que uma árvore crescia com mais vigor do que as outras, apesar de estar fora da zona irrigada. Intrigado, foi investigar o segredo daquela planta e acabou descobrindo que o cano que levava a água até os aspersores passava debaixo dela. Cada vez que a bomba era acionada, algumas gotas vazavam e nutriam suas raízes.

Blass guardou esse segredo por 25 anos. Ao se aposentar, inventou um dispositivo – o gotejador – que diminuía a pressão dentro do cano, fazendo a água sair em gotas. Era o início da transformação de Israel em potência agrícola. Em 1965, o engenheiro assinou um acordo com o kibutz Hatzerim (um daqueles 11 construídos no Neguev) para a criação da empresa de irrigação Netafim. Hoje, ela é a líder mundial do setor, com mais de 4.300 funcionários, 29 filiais e 17 fábricas ao redor do mundo. Duas delas ficam no Brasil – uma em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, e outra em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco.

“Em 2018, a Netafim registrou mais de US$ 1 bilhão em vendas”, diz Chelo Tunik, que trabalha há 48 anos na empresa. “A quantidade de mangueiras com gotejadores que já produzimos seria suficiente para ir à Lua e voltar 20 vezes por ano.” Chelo dirigiu os setores de produção, exportação e operações da empresa na América Latina. Hoje, é assessor da divisão de mineração.

Firmas como a Netafim não fabricam só canos, filtros e válvulas. Também criam softwares complexos que monitoram as plantações com sensores eletrônicos e fotos de satélite. É a chamada agricultura de precisão. “Apesar da revolução da Netafim, menos de 5% das áreas cultivadas com irrigação no mundo usam gotejamento”, diz Chelo. “Ainda se desperdiça muita água com o sistema de inundação em campos para cultivo de arroz, milho e trigo.”

Agrotech
Exemplos da tecnologia que ajuda Israel a produzir muito com pouca água.

A empresa Saturas desenvolveu um sensor que é acoplado ao tronco de árvores frutíferas, para medir a quantidade de água em seu interior. Assim, otimiza-se a irrigação e a produtividade. (Saturas/Divulgação)

 

A Tevatronic inventou um sistema autônomo de irrigação. Com base nos dados coletados no campo, ele decide sozinho a quantidade e a frequência de água que a planta necessita. (Tevatronic/Divulgação)

 

Sensores criados pela SupPlant medem radiação, umidade e salinidade do solo, transmitindo os dados para o celular do agricultor. O sistema reduz em 30% o desperdício de água. (SupPlant/Divulgação)

Reúso
Os gotejadores inventados pelo engenheiro Simcha Blassoram foram cruciais para a agricultura em Israel. Mas o rápido crescimento populacional experimentado pelo país desde sempre deixou claro que as fontes naturais não bastariam para o abastecimento de água. Assim, nos anos 1980, o país começou a tratar o esgoto para transformá-lo numa fonte alternativa de água. Hoje, 93% do esgoto de Israel vai para estações de tratamento. E 87% das águas residuais tratadas são reutilizadas, sobretudo na irrigação. É uma das maiores taxas de reúso de esgoto do mundo. Dezenas de usinas fornecem mais de 400 milhões de metros cúbicos de água de reúso por ano, irrigando cerca de 130 mil hectares.

A gigantesca estrutura de coleta de água emprega tecnologias de empresas privadas. A Kando, por exemplo, usa inteligência artificial para monitorar o esgoto industrial. “Nosso sistema detecta eventos de poluição, encontra a origem e avisa a estação de tratamento”, explica Ricardo Gilead Baibich, diretor de tecnologia da Kando.

Mesmo com fortes investimentos em irrigação e reúso, que colocaram Israel na vanguarda da gestão hídrica, o país continuava muito dependente das fontes naturais de água, incluindo o Lago Kineret. Cada vez que seu nível baixava por falta de chuva, o fantasma da escassez voltava a assombrar. A solução veio nos anos 2000: em apenas uma década, Israel construiu cinco usinas de dessalinização, que transformam a água do mar em água potável. Juntas, elas hoje fornecem quase a metade da água que os israelenses bebem.

Sem sal
Uma dessas usinas é Sorek, a maior unidade de dessalinização do mundo. Situada a 15 km de Tel Aviv, ela fornece água potável para 1,5 milhão de pessoas (quase 20% da população). O processo, conhecido como osmose reversa, é engenhoso. A água do Mediterrâneo passa por membranas que retêm os sais. O líquido que atravessa as barreiras vira água potável, e o que fica retido é bombeado de volta ao mar. Seu ponto fraco é o alto consumo de energia, que responde por até 50% dos custos de operação. Mas Sorek foi projetada para economizar em cada etapa.

Por exemplo: em vez de desperdiçar o fluxo de salmoura (um subproduto do processo), ela captura energia dele e a utiliza para alimentar as bombas. A usina foi construída pela israelense IDE Technologies, líder mundial em tratamento de água, com 400 unidades de dessalinização em 40 países.

Usinas menores vieram depois, integrando uma rede que abastece todo o país. Quando um cidadão compra água encanada, portanto, ele paga não só o custo de levá-la até sua torneira, mas também o que custará transformá-la de volta em água para a agricultura.

Hoje, embora o fantasma da escassez tenha ficado para trás, campanhas de conscientização continuam sendo veiculadas nos meios de comunicação. E cada cidadão faz sua parte, economizando o quando pode. “O medo da falta de água ainda atormenta os israelenses”, diz o economista brasileiro Amir Szuster, que mora em Tel Aviv. “Até hoje as pessoas comemoram quanto chove muito e o nível do Kineret sobe.”

Fonte: Super Interessante – Por Eduardo Szklarz