Uma das qualidades que mais definem os maiores craques do futebol é a capacidade que eles têm de antever uma jogada. A inteligência natural de jogadores como Pelé, Messi, Sócrates e Zidane, todos caracterizados pelo rápido raciocínio, dava essa condição de encontrar alguém onde ninguém imagina. Essa aliança entre intuição e reação instantânea tem sido cada vez mais objeto de estudos e descobertas da ciência com o uso da inteligência artificial (IA), uma inteligência programada e projetada que, se não é genial, como a dos homens, é poderosa por ser artificial, como a dos robôs.
Já existem softwares avançados que controlam estruturas robóticas capazes de realizar movimentos humanos cada vez mais precisos. No exército israelense, soldados-robôs estão sendo preparados para atuar na frente de combate, inclusive preparados para desarmar o oponente em uma luta corporal. No futebol, figuras metálicas semelhantes já estão sendo produzidas, abrindo caminho para, no futuro, serem criados androides, com a aparência idêntica à de seres humanos, para interagirem com os jogadores.
Para o engenheiro brasileiro Hayim Makabee, mestre em Ciências da Computação pelo Technion, Instituto de Tecnologia de Israel, o avanço das tecnologias faz essa ideia, antes restrita a filmes de ficção e desenhos animados, se tornar possível no mundo real. A empresa da qual Makabee é o CEO, de nome Tropx, tem trabalhado com programas de IA para clubes de futebol, como o Maccabi Haifa.
“Seria interessante usar os robôs (androides no futuro) para os treinamentos, focando no desenvolvimento de habilidades específicas. Assim, por exemplo, o robô-goleiro, que nunca ‘franga’, poderia ajudar os jogadores a melhorar os seus chutes. Ou, pelo contrário, um robô que chuta com perfeição poderia praticar a defesa de pênaltis com os goleiros do time. Esse treino conjunto seria muito útil para permitir aos jogadores de carne e osso se aprimorar tanto em aspectos físicos quanto técnicos”, afirmou o engenheiro, que mora em Israel e tem mais de 25 anos de experiência na indústria israelense de alta tecnologia.
A importância dessas tecnologias não necessariamente fica restrita ao futebol, ou ao esporte de modo geral. A utilização de robôs pode servir para outras aplicações, em diversas áreas, como a de combate a desastres, reações em incêndios, primeiros socorros, tratamentos médicos e na predição da mortalidade em casos de doenças.
Mas, em um momento em que as novidades surgem como uma tentação, tudo precisa ser feito com critério, conforme alerta o professor Marco Túlio Carvalho de Andrade, da POLI (Escola Politécnica da Universidade de São Paulo), doutor em Informática pela Faculdade de Informática de La Universidad Politécnica de Madri, com experiência em Engenharia Elétrica/Eletrônica, na área de Inteligência Artificial.
“A questão fundamental está em saber se os problemas que esta inovação tecnológica pretende resolver são problemas reais e importantes para os setores onde será aplicada e também se seu uso não implicará no surgimento de outros problemas que não existiam antes de sua utilização”, observa Andrade.
Em relação aos jogadores de futebol, com a inclusão de robôs para dividir com eles os treinamentos, a tendência, conforme observa o engenheiro Makabee, é o potencial humano dos atletas evoluir cada vez mais. Os parâmetros podem subir dentro das condições humanas.
“Acredito que nós vamos continuar a observar a evolução dos jogadores de futebol e de todos os esportistas e atletas de uma forma geral. Essa evolução será acelerada pela utilização de tecnologias avançadas, dentro e fora do campo. Por exemplo, o produto que nós estamos desenvolvendo na Tropx vai possibilitar aos atletas praticar exercícios físicos com grande precisão, otimizando o seu desempenho”, observa.
CRAQUES APRIMORADOS
E não seria novidade, conforme admite Makabee, o surgimento de inúmeros Messi e Cristiano Ronaldo aprimorados. Hoje, ambos já são conhecidos pelos apelidos de ET e Robozão, respectivamente.
“Assim podemos imaginar que no futuro, com o apoio dessas novas tecnologias, surgirão atletas com habilidades superiores aos melhores craques da atualidade. Também acho que esses atletas do futuro poderão se aposentar mais tarde porque durante suas vidas sofrerão menos lesões e contusões”, destaca.
No futebol, a IA já é uma realidade em muitos outros tipos de situação. Pesquisadores da Unicamp, por exemplo , criaram um software para prever quando uma jogada terminará no ataque, situação que aumenta a probabilidade da ocorrência de um gol.
A empresa em Israel já tem utilizado a IA para ajudar os esportistas a treinar e fazer exercícios de forma mais eficiente. “O atleta usa uma roupa especial com sensores (um wearable) e os dados gerados por esses sensores são analisados pelos nossos modelos. Podemos assim avisar para o usuário, em tempo real, se ele está se exercitando de forma correta ou errada, e também podemos ajudá-lo a se exercitar melhor, indicando as causas dos seus erros. Isso tem um papel importante na prevenção de lesões que ocorrem com frequência quando uma pessoa treina de forma errada”, diz.
O Maccabi Haifa já está utilizando essas ferramentas baseadas em algoritmos que começam a revolucionar o trabalho das comissões técnicas. Como um complemento decisivo dos testes fisiológicos, elas ajudarão na decisão de como escalar os jogadores para a próxima partida, de acordo com o desempenho que tiveram nas partidas e nos treinamentos anteriores, ressalta o engenheiro, que aponta também para muitas mudanças durante os jogos.
“Fora isso, nós pretendemos no futuro, em tempo real, durante o jogo, analisar o desempenho dos jogadores e ajudar a indicar se é necessária alguma adaptação na estratégia da partida ou na composição da equipe. Assim, por exemplo, o modelo de IA pode recomendar ao treinador que é necessário substituir algum atleta específico, ou que seria melhor adotar uma estratégia mais agressiva ou mais defensiva”, destaca.
ALGORITMOS E TREINADORES
A cada dia, evoluindo em um amplo centro de treinamento formado por uma legião de computadores ultramodernos, em universidades, laboratórios e empresas, a IA tem descoberto caminhos para o futebol e experimentos que servirão para a sociedade também. A definição de algoritmo é de uma sequência de comandos produzidos de forma sistemática cuja meta é solucionar um problema ou realizar uma tarefa.
Na limitação humana de um treinador de futebol, tal definição se assemelha ao seu objetivo de tentar prever, dentro de suas condições, toda a sequência de lances de um jogo, a fim de neutralizar o adversário e chegar à vitória. Assim como os craques, alguns treinadores, como Pep Guardiola, têm uma capacidade ampla de realizar esse tipo de previsão, utilizando também sua inteligência natural para intuir o máximo possível de algoritmos.
Muitas dessas tecnologias de IA poderão estar reunidas nessa possível implementação dos robôs nos métodos de treinamentos, para complementar o trabalho de técnicos e jogadores. Esses robôs tenderão a ter capacidade de prever movimentação de oponentes, desgastes, pontos vulneráveis e as maiores virtudes para serem neutralizadas. Serão, com isso, mais do que um desafio, um estímulo ao desenvolvimento humano.
QUESTÕES ÉTICAS
Atualmente, tecnologias direcionadas à construção de robôs que jogam futebol estão sendo usadas em projetos como o Artemis, robô de esqueleto metálico que mede 1,42 m e 38 kg, desenvolvido pela UCLA (Universidade da Califórnia), nos EUA. Ele tem, entre outros fatores, aprimorado a precisão do chute.
Já a RoboCup é uma competição futebolística entre robôs, realizada desde 1997. Em 2023, ocorrerá no mês de julho, em Bordeaux, França. A novidade será a utilização do MIT’s Dribblebot, um robô construído para enfrentar situações de extrema dificuldade no futebol, como gramado em desnível, aplicando dribles com o máximo de perícia.
O objetivo é, até 2050, realizar um desafio no qual os robôs vençam a seleção campeã mundial na ocasião. Será um momento em que o aperfeiçoamento dos robôs poderá transformá-los em androides com aparência humana. Tem tempo? Tem. Mas também está logo aí.
É importante ter a consciência, no entanto, conforme ressalta Makabee, de que o robô não vem para competir com o ser humano. E sim para ajudar a encontrar alternativas em busca de uma saudável evolução do próprio ser humano, melhorias sociais e na qualidade de vida das pessoas.
Ele acredita que, neste processo, as questões éticas precisam ser priorizadas, para que o uso da tecnologia não se transforme em algo prejudicial. “Eu acho que a ética exige que todos os jogadores estejam competindo em condições igualitárias. Então, da mesma forma que hoje nós proibimos o uso de drogas, talvez no futuro sejamos obrigados a proibir também qualquer tecnologia que resulte em uma vantagem injusta para quem a utiliza”, diz.
Nem que, para isso, as regras tenham de se adaptar, passando a, formalmente, proibir a utilização de robôs em competições humanas. “Se no futuro existirem androides que são idênticos aos humanos, provavelmente também vão existir regras definindo que certas competições são exclusivas para humanos e os androides não podem participar. Eu apenas espero que nesse mundo futuro continuem sendo os humanos que vão definir as regras”, completa, para que o futebol continue sendo “uma caixinha de surpresas”, como disse um dia Pelé.
Fonte: EUGENIO GOUSSINSKY / ESTADÃO
Foto: Tima Miroshnichenko